01 novembro 2005

Metamorfina


Metamorfina _ pág 6


Esta manhã acordei e, ao sair da cama, verifiquei que arrastava ligeiramente o pé esquerdo. Era um arrastar pesado, lento, mas compassado: como que um prolongamento do esforço de andar.
Eram já horas de sair, mas toda aquela nova situação, que se agravava ao longo dos meus afazeres matinais, me atrasara bastante, ao ponto de levar quase dez minutos só para vestir as calças, e duas vezes um quarto disso para calçar os sapatos.
Não poderia aparecer assim no escritório. Nem pensar!
Fui ao fundo dos meus recursos, mas nada me parecia eficaz: Um par de muletas iria criar aquela horrivel reacção de piedade passageira, perversamente temperada com o nojo inspirado por uma aberração; e uma bengala só me daria um ar petulante e irrisório.
Foi então que, ao passar pela cozinha, para o habitual café da manhã, se me prendeu o pé no armário, refúgio da minha meticulosa colecção de garrafas que, em tantas outras ocasiões, completaram as não menos meticulosas exigências dos prazeres da noite.
Aquilo estava a enervar-me e, ao tentar reaver o meu pé, parti uma das três últimas sobreviventes de Brunello di Montalcino de 71. A fúria afogou-me a razão e, num revirar de olhos, um impulso lançou-me as mãos ao aguçado cutelo da carne, deixado sobre a bancada desde o jantar da véspera.
Quando a ira se afastou, a razão narrava-me o sucedido: O cutelo jazia no chão, junto a um resto de tecido das minhas calças e ao sapato ensopado em sangue. Dentro deste, ainda palpitava o que fora o meu pé.
Fiquei danado com a situação, e tratei logo de pensar em como é que a ía resolver.
Nada de hospitais! O que é que eu iria parecer, se se soubesse que tinha cortado o meu próprio pé?! As pessoas têm uma tendência para não compreender esse tipo de coisas…

(cont.)


Escrito em 2002, foi agora publicado, em versão BD, com desenhos de João Sequeira e edição da Bêdêteca.



1 comentário:

Lusaut disse...

Então? E o lançamento, a apresentação? O buffet? Os copos à borla?